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sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

A LADRA DE MEMÓRIAS

  Sobre a dor e as alegrias do convívio com o esquecimento, ela sabe muito bem. Mesmo que não se dê conta disso. Lembranças antigas voltam a sua memória, misturando o que já foi, do que seus olhos vêm.  Vez ou outra ela chama por nomes que já deixaram este plano há muito tempo, mas que em sua cabaça confusa ainda habitam a terra. 

  Hoje, a senhora de 80 anos arruma uma sacola com pequenos pertences na intenção de deixar a própria casa - casa qual, ora ou outra, ela desconhece como sua -.  Na pequena sacola de plástico apenas um livro de orações e algumas peças de roupas. Ela se questiona de onde poderia estar um dinheiro que guardou. Diz que eram 25 reais. Alguns minutos depois o valor diminui para 20. A senhora de cabelos grisalhos e pele negra anda de um lado para o outro no quarto. Ela lembra e esquece do dinheiro diversas vezes. É difícil convence-la de que ela não tem o valor imaginado.  A senhora teima de que sim, e que o dinheiro seria usado para a passagem de volta para casa. Segundo a mesma, ela já teria passado muito tempo ali.

  A convido para um passeio. O objetivo é estimular os músculos da perna e distraí-la um pouco. Não deixo que ela saiba onde estamos indo. Mesmo que o destino fosse revelado, logo ela questionaria novamente. Pego em sua mão para evitar que caia. – não que eu consiga evitar a queda -, sou um apoio.

  No caminho ela se surpreende com o tamanho das árvores plantadas na avenida. E se questiona de como cresceram tão rápido. Olha para um pé de goiaba em uma das calçadas que passa. Arrisca pegar uma, mas alerto que ainda estão muito verdes. Seus passos são lentos e arrastados.

  Agora ela pergunta para onde estamos indo. Digo que para um lugar que ela gosta muito. Deixo que ela pense nesse lugar. Ela olha para meu rosto e me cutuca na expectativa de que eu fale onde é, pois sua memória já não se recorda. Digo que estamos indo tomar sorvete, então ela solta um “ que maravilha”. A doce senhora sempre gostou de sorvete. Antes da doença, levava os netos para sorveteria quando estavam de férias na escola.

  Depois de algum tempo a senhora chega ao seu destino. Da sua casa até ali apenas alguns quarteirões. As pernas aguentaram bem a caminhada. Ela se senta em uma das mesas e fica feliz pelo ar gelado que sai de um grande ventilador.  Pergunto qual sabor a ela quer, a resposta vem acompanhada de uma expressão de dúvida. Em seguida o assunto dinheiro volta à tona. Ela se recusa em aceitar o sorvete. Diz que não trouxe dinheiro, que não achou ele.  Depois de insistir que não tinha problema ter esquecido o dinheiro, ela diz que posso escolher qualquer sabor. Opto pelo de milho verde, um de seus favoritos.  Na verdade, sei que é seu predileto.

  Entre uma colherada e outra pergunto se está gostando. Ela diz que está maravilhoso e come como se fosse uma novidade. E de fato ali, naquela hora, era.  Seus olhos são um misto de satisfação e alegria. Ela olha ao redor e diz que nunca tinha ido naquela sorveteria.

  A Doce senhora está feliz. Olha pra mim e pergunta quanto foi o sorvete. Digo que R$ 4,00. Ela se assusta e diz que antigamente era mais barato. O céu está escuro, o vento indica que a chuva chegará logo. Decidimos voltar para casa. No caminho de volta ela fala novamente sobre as árvores e se mostra tão indignada pelo tamanho delas quanto da primeira vez. Para ela é sempre a primeira vez.

  Naquele dia, a senhora de cabelos brancos se sentia confusa, e tinha consciência disso. Depois daquela pequena distração em forma de felicidade, ela esqueceu – ao menos por um tempo-. Chagando na casa, a senhora diz que o passeio foi ótimo, mas que já está na hora dela ir para casa.
Onde é sua casa, não se sabe. Talvez seja a casa de sua infância, adolescência ou fase adulta. Talvez seja ali mesmo. Com o tempo, algumas coisas na casa em que mora a mais de 30 anos mudaram. Me pergunto se não seria esse o motivo que ela não reconheça como sua. Uma coisa é nítida, apesar da doença que rouba memórias, a senhora nunca deixou de ser ela mesma. É uma batalha árdua e diária, para ela, para família e para quem convive com isso. Mas apesar das diversidades e aflições, no fundo, bem lá no fundo... em algum lugar ela se lembra.


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