Sobre a dor e as alegrias do
convívio com o esquecimento, ela sabe muito bem. Mesmo que não se
dê conta disso. Lembranças antigas voltam a sua memória, misturando o que já
foi, do que seus olhos vêm. Vez ou outra
ela chama por nomes que já deixaram este plano há muito tempo, mas que em sua
cabaça confusa ainda habitam a terra.
Hoje, a senhora de 80 anos arruma
uma sacola com pequenos pertences na intenção de deixar a própria casa - casa
qual, ora ou outra, ela desconhece como sua -.
Na pequena sacola de plástico apenas um livro de orações e algumas peças
de roupas. Ela se questiona de onde poderia estar um dinheiro que guardou. Diz
que eram 25 reais. Alguns minutos depois o valor diminui para 20. A senhora de
cabelos grisalhos e pele negra anda de um lado para o outro no quarto. Ela
lembra e esquece do dinheiro diversas vezes. É difícil convence-la de que ela não
tem o valor imaginado. A senhora teima
de que sim, e que o dinheiro seria usado para a passagem de volta para casa.
Segundo a mesma, ela já teria passado muito tempo ali.
A convido para um passeio. O
objetivo é estimular os músculos da perna e distraí-la um pouco. Não deixo que
ela saiba onde estamos indo. Mesmo que o destino fosse revelado, logo ela
questionaria novamente. Pego em sua mão para evitar que caia. – não que eu
consiga evitar a queda -, sou um apoio.
No caminho ela se surpreende com
o tamanho das árvores plantadas na avenida. E se questiona de como cresceram
tão rápido. Olha para um pé de goiaba em uma das calçadas que passa. Arrisca
pegar uma, mas alerto que ainda estão muito verdes. Seus passos são lentos e
arrastados.
Agora ela pergunta para onde
estamos indo. Digo que para um lugar que ela gosta muito. Deixo que ela pense
nesse lugar. Ela olha para meu rosto e me cutuca na expectativa de que eu fale
onde é, pois sua memória já não se recorda. Digo que estamos indo tomar
sorvete, então ela solta um “ que maravilha”. A doce senhora sempre gostou de
sorvete. Antes da doença, levava os netos para sorveteria quando estavam de
férias na escola.
Depois de algum tempo a senhora
chega ao seu destino. Da sua casa até ali apenas alguns quarteirões. As pernas
aguentaram bem a caminhada. Ela se senta em uma das mesas e fica feliz pelo ar
gelado que sai de um grande ventilador.
Pergunto qual sabor a ela quer, a resposta vem acompanhada de uma
expressão de dúvida. Em seguida o assunto dinheiro volta à tona. Ela se recusa
em aceitar o sorvete. Diz que não trouxe dinheiro, que não achou ele. Depois de insistir que não tinha problema ter
esquecido o dinheiro, ela diz que posso escolher qualquer sabor. Opto pelo de
milho verde, um de seus favoritos. Na verdade, sei que é seu predileto.
Entre uma colherada e outra
pergunto se está gostando. Ela diz que está maravilhoso e come como se fosse
uma novidade. E de fato ali, naquela hora, era. Seus olhos são um misto de satisfação e
alegria. Ela olha ao redor e diz que nunca tinha ido naquela sorveteria.
A Doce senhora está feliz. Olha
pra mim e pergunta quanto foi o sorvete. Digo que R$ 4,00. Ela se assusta e diz
que antigamente era mais barato. O céu está escuro, o vento indica que a chuva
chegará logo. Decidimos voltar para casa. No caminho de volta ela fala
novamente sobre as árvores e se mostra tão indignada pelo tamanho delas quanto
da primeira vez. Para ela é sempre a primeira vez.
Naquele dia, a senhora de cabelos
brancos se sentia confusa, e tinha consciência disso. Depois daquela pequena
distração em forma de felicidade, ela esqueceu – ao menos por um tempo-.
Chagando na casa, a senhora diz que o passeio foi ótimo, mas que já está na
hora dela ir para casa.
Onde é sua casa, não se sabe.
Talvez seja a casa de sua infância, adolescência ou fase adulta. Talvez seja
ali mesmo. Com o tempo, algumas coisas na casa em que mora a mais de 30 anos
mudaram. Me pergunto se não seria esse o motivo que ela não reconheça como sua. Uma
coisa é nítida, apesar da doença que rouba memórias, a senhora nunca deixou de
ser ela mesma. É uma batalha árdua e diária, para ela, para família e para quem
convive com isso. Mas apesar das diversidades e aflições, no fundo, bem lá no
fundo... em algum lugar ela se lembra.